A luta quilombola: caminhos e perspectivas

O direito das comunidades remanescentes de quilombos no Brasil hoje está pautado primeiramente pelo Art. 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Federal de 1988, que dispõe que o Estado deverá emitir o título de propriedade aos remanescentes de comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras. O artigo foi uma grande vitória do Movimento Negro durante a constituinte, mas necessitou ser regulamentado posteriormente por divergências acerca de sua auto aplicabilidade.

A sua regulamentação, portanto, foi e continua sendo objeto de disputas entre os setores favoráveis às medidas de reparação à população negra por meio do acesso ao território – dentre outras políticas afirmativas – e os setores contrários tanto às políticas de reparação quanto às políticas de democratização do acesso a terra no Brasil.

Neste contexto de luta, o Centro de Assessoria Jurídica Mariana Criola é um coletivo de advogadas de direitos humanos que a atua há mais de 15 anos ao lado dos movimentos sociais nas lutas por terra, trabalho, território e direitos de maneira geral. O coletivo está articulado na Rede Nacional de Advogadas e Advogados Popular (RENAP), que reúne profissionais de Direito comprometidos com as causas sociais por todo Brasil. O Sindipetro-RJ , em razão de sua histórica luta popular , conversou com uma representante do coletivo Mariana Crioula, a advogada Aline Caldeira.

Como está o andamento da luta pela titulação das terras quilombolas?

Até o momento, trinta anos após a Constituição Federal e o “Artigo 68”, ainda não foi possível uma composição parlamentar que garanta uma lei que regulamente o procedimento de titulação quilombola no Brasil. A política atualmente é pautada pelo Decreto Presidencial 4.887/2003, de autoria do então presidente Luís Inácio Lula da Silva. Dentre os principais pontos do Decreto estão a definição da competência do INCRA para a condução da política, a afirmação do critério da auto atribuição do grupo como comunidade quilombola para o reconhecimento da identidade e a possibilidade de desapropriação da propriedade que seja demarcada como território quilombola. O Decreto passou a ter sua constitucionalidade questionada no STF em 2004 pelo então Partido da Frente Liberal (PFL), hoje DEM e a ação tramitou até o ano de 2018, quando foi concluída, sendo julgada improcedente.

Apesar da vitória, em um julgamento que mobilizou ativistas e comunidades quilombolas de todo o país, as recentes eleições presidenciais apontam para um governo contrário à manutenção da política de reconhecimento e titulação de territórios quilombolas no Brasil hoje, o que poderá significar a revogação do referido Decreto. Isso representaria um retrocesso para os procedimentos de titulação que estão em andamento ou mesmo concluídos.

Além disso, o próprio INCRA, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, poderá ser seriamente questionado no próximo governo, como uma Autarquia que possui, dentre suas principais atribuições, a realização da reforma agrária no país. No entanto, a política quilombola poderá, no próximo período, fortalecer-se por meio dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos, em especial a Convenção n° 169 da Organização Internacional do Trabalho. Ela dispõe sobre os direitos dos povos indígenas e tribais e se aplica, por analogia, aos territórios quilombolas no Brasil. Juntamente com o Art. 68 dos ADCT da CF/1988 poderão dar suporte legal aos processos de titulação quilombola e fortalecer os territórios tradicionais no Brasil. O cenário, portanto, é grave e vislumbra-se um forte aumento da concentração de terras e da violência no campo no próximo período. Resistir é preciso.

Qual a perspectiva para o governo Bolsonaro, já que ele em 2017, durante uma palestra NO Clube Hebraica DO Rio de Janeiro, fez uma fala racista contra os povos quilombolas?

Este episódio simboliza bem o que representam as políticas de reparação ao passado escravocrata no Brasil, bem como as políticas de democratização do acesso à terra e ao território tradicional no futuro governo Bolsonaro. Até então o grande desafio era fazer com que os discursos tivessem concretude e o condão de alterar, de fato, uma formação social brasileira marcada pelo racismo e pelo latifúndio. Hoje, ao contrário, nossa luta é para que os discursos se mantenham somente enquanto idéias o que parece impossível.

Qual a situação da mulher quilombola hoje no Brasil?

A mulher quilombola está exposta ao risco de desmantelamento de toda a política quilombola que, com muitas debilidades, foi construída até aqui. Ela representa um setor ainda mais vulnerável ao desmonte das políticas públicas no campo que, em muitas situações estão relacionadas com a regularização do território. Para citar algumas: o acesso a creches, escolas, saúde, transporte público, dentre outras.

 

Versão do impresso Boletim Especial Consciência Negra

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