O professor William Nozaki (foto) está sendo processado por seus artigos que denunciam as relações do presidente da Petrobras com o sistema financeiro. O Sindipetro-RJ conversou com ele.
Em seus artigos você fala no interesse do setor financeiro neste processo de desmonte e venda de ativos da Petrobras. Este processo de privatização é diferente daquele iniciado por FHC e sua tentativa de criar a Petrobrax?
Tanto no governo FHC quanto no atual governo Temer o desmonte das empresas estatais encolheu a capacidade do Estado planejar, regular e coordenar pacotes de investimentos capazes de promover o desenvolvimento industrial e tecnológico do país. Entretanto, há uma diferença entre os dois períodos. No governo FHC as privatizações respondiam a um projeto de enxugamento do Estado e de reconformação do chamado tripé macroeconômico, naquela ocasião a política monetária de juros elevados e a política fiscal de superávits primários buscava cumprir três objetivos: manter a estabilidade da moeda com a valorização cambial do real, atrair e remunerar bem os compradores de títulos da dívida pública e ampliar o superávit primário a fim de abrir o mercado nacional para a financeirização. No governo Temer as privatizações respondem a um projeto acelerado de pilhagem do Estado e de ruptura com os principais pactos sociais brasileiros, haja vista o que se faz com a CLT e com a Constituição, não há pudor em colocar desregradamente todo o patrimônio nacional à venda e mesmo assim o país continua com déficit público, sem crescimento econômico e com piora nas políticas públicas como um todo. Não concordo com nenhum dos dois projetos de privatização, mas o do FHC ao menos guardava certa racionalidade econômica, ao passo que o que vem sendo proposto pelo Temer parece estar ancorado na irracionalidade política. FHC não conseguiu vender a Petrobras e mudar o nome da companhia por dois motivos: pela resistência dos trabalhadores petroleiros e pela percepção de que era melhor manter a estatal assumindo riscos para que depois as petrolíferas estrangeiras apenas aproveitassem os retornos de explorar e produzir em áreas já descobertas pela estatal brasileira. No governo Temer, nem o princípio liberal – contestável, diga-se de passagem – da Petrobras como sócia-menor do setor petrolífero internacional tem sido observado, tudo é passível de ser desmontado celeremente para que o governo tente manter o apoio relativo que tem do poder econômico e do Congresso.
Quais os pontos mais graves do projeto de desmonte de Parente, sutilmente chamado de plano de desinvestimento?
O plano de negócios e gestão da Petrobras para o período 2017-2021 sinaliza para a retirada da Petrobras das áreas de petroquímica, gás natural, logística, distribuição, biocombustíveis e fertilizantes. Mas ele precisa ser observado como parte do conjunto de mudanças regressivas realizadas pelo atual governo nas políticas de minas e energia, pois, além do desmonte da Petrobras há ainda: a intensificação e aceleração dos leilões de desestatização para o próximo biênio com a realização de um total de dez rodadas (CNPE – Calendário plurianual de rodadas de licitação 2017-2019); a redução drásticados índices da política de conteúdo local (ANP – Resolução de 2017); a flexibilização do contrato de investimento em pesquisa, desenvolvimento e inovação para empresas estrangeiras (ANP – Resolução de 2017); o fim da atuação da Petrobras como operadora única com no mínimo 30% das áreas do pré-sal (PLS 131/2015); o fim do contrato de cessão onerosa que dá à Petrobrás o direito de explorar o excedente de petróleo em certas áreas de exploração e produção (Lei 12276/2010)*; a renovação do subsídio para importação e suspenção de tributos para as petrolíferas estrangeiras até 2040 (REPETRO – Decreto 9128/2017); incentivos e renúncia fiscal para atividades de exploração e produção de empresas estrangeiras no país (MP 795/2017); tudo culminando na redução de contratação de trabalhadores próprios (intensificada pela própria reforma trabalhista) e na flexibilização da entrada de engenheiros estrangeiros no país (em projeto de lei que em breve o Executivo deve encaminhar ao Congresso).
Quais as consequências para o país deste desmonte?
Do ponto de vista internacional, com a atual política o Brasil está perdendo a chance de se tornar um player relevante no mercado mundial de energia e petróleo. Do ponto de vista nacional, estamos abrindo mão de uma política industrial consistente, os impactos nas cadeias produtivas de fornecedores da Petrobras também é significativo, as indústrias naval, de construção civil e metal-mecânica passam por um período de revés, com obras paradas e demissão da mão de obra. O desemprego tem tomadoproporções assustadoras. Mas, além desses impactos geopolíticos e macroeconômicos, também chama a atenção o desapego com a soberania nacional, com o desenvolvimento tecnológico e com o próprio futuro do país, dado que o que se desmonta são as bases do arranjo institucional que nos permitiu ser uma das dez maiores economias do mundo.
Quais os riscos da manutenção de Pedro Parente no Conselho Administrativo da B3 (fusão da BM&FBovespa e Cetip), mesmo depois de assumir a direção da Petrobrás?
A sobreposição de cargos entre a presidência da Petrobras e a presidência do conselho da B3 pode ser um indício de que alguns players do mercado financeiro podem estar realizando decisões de compra e venda de papéis com algum nível de informação assimétrica (ou com aquilo que os economistas chamam de “inside information”), esse fato mereceria atenção em qualquer circunstância, mas em um momento de desestatização da Petrobras a atenção deve ser redobrada. A Petrobras, assim como todas as empresas públicas, tem uma dupla natureza: como sociedade anônima ela tem interesses de mercado que são legítimos, como empresa estatal ela deve ter compromisso público com a soberania e o desenvolvimento nacionais, pois ela gere ativos e recursos naturais que são de propriedade de toda a população brasileira e não apenas de seus gestores ou acionistas. Em um momento em que a direção da empresa explicita a priorização dos interesses do mercado, cabe à sociedade fiscalizar e fazer perguntas que nos permitam averiguar se os interesses públicos estão sendo devidamente observados, como professor, pesquisador e cidadão tenho tentado monitorar esse processo.
O fato de Pedro Parente ser conselheiro do grupo RBS, que representa a Rede Globo no RS, e do Grupo ABC – empresa de propaganda que tem como sócios Nizan Guanaes e Armínio Fraga – ajuda a vender à sociedade suas ideias de desmonte?
Há um conjunto de afinidades prévias entre as pessoas e instituições citadas, elas compartilham de uma mesma visão de mundo baseada na ideia de que o Estado é o grande responsável pelos nossos vícios enquanto cabe ao mercado resguardar o que seriam nossas potenciais virtudes. É compreensível, embora não necessariamente seja aceitável, que essas figuras circulem por espaços próximos e compartilhem das mesmas redes de relações sociais, políticas e econômicas. Em um país de renda e riqueza concentradas e de capitais simbólicos oligopolizados é quase natural que a alta elite comungue das mesmas antessalas do poder e do dinheiro. O problema é quando ideias em comum se convertem em interesses cruzados, é para essa passagem das ideias aos interesses que devemos estar sempre atentos.
A Petrobras planeja concluir a sua adesão ao Nível 2 de Governança Corporativa da bolsa paulista B3 ainda neste ano, em busca de elevar a transparência da empresa. Será somente isso ou também visa dar uma forcinha aos negócios de Pedro Parente?
As instituições brasileiras ainda precisam palmilhar um longo caminho para aperfeiçoar suas diretrizes e práticas de governança e conformidade. Recentemente diversos veículos da imprensa divulgaram o fato de que o diretor de governança da Petrobras foi temporariamente afastado do cargo, pois sua filha havia sido contratada pela Deloitte pouco tempo depois de a consultoria ter firmado um contrato sem licitação da Petrobras. Não entro no mérito sobre a justeza ou não do afastamento, mas uso o exemplo para chamar a atenção para um ponto que suscita uma pergunta: enquanto só as instituições do mercado fiscalizarem a governança das empresas será que teremos uma fiscalização adequada?
A companhia diz que almeja independência em relação ao governo nos processos de decisão, permitindo inclusive maior voz aos acionistas minoritários. O Conselho de Administração realizou ajustes no Estatuto da Petrobrás. A ampliação de voz aos acionistas minoritários seria um dos principais avanços alcançados. Mas toda empresa estratégica, pública ou privada, sempre estará sob um projeto político, não?
O acionista majoritário da Petrobras é o Estado brasileiro, dar mais voz aos acionistas minoritários é apenas uma outra forma de se dizer que os players do mercado terão mais relevância do que um possível projeto estratégico e de desenvolvimento que leve em consideração menos a atração de capitais externos e mais a soberania e a autossuficiência energética do país.
O que achou deste processo de Pedro Parente contra você e como está a rede de solidariedade contra este abuso intimidatório?
Fiquei surpreso com o processo e muito feliz com a acolhida que recebi de diversas pessoas e segmentos sociais que de alguma forma estão atentos e lutando pela indústria de energia e petróleo no Brasil. Prefiro encarar o meu caso não como algo pessoal e pontual, mas como um certo modus operandi que infelizmente vêm se impondo na relação entre Estado e sociedade no Brasil recente, onde o dissenso e a divergência estão sendo paulatinamente substituídos pela judicialização. O que mais me chama a atenção na conjuntura recente não são as interpelações que vêm da estrutura do Estado e de seus agentes, essas acontecem desde sempre. O que salta aos olhos são as interpelações que a própria sociedade tem se imposto: o projeto escola sem partido avança, parte das ciências humanas é banida dos currículos obrigatórios, grupos de estudo são investigados, blogues progressistas são hackeados, jornalistas são silenciados, artigos de opinião são objeto de interpelação judicial, uma filósofa de reputação internacional em visita ao país é ameaçada e agredida. Os saberes, as ciências e as artes não podem ficar à mercê daqueles que usam o direito democrático de liberdade de expressão para atentar contra a própria democracia. Um país que sufoca sua inteligência não conseguirá encontrar uma saída para si próprio. É preciso resistir.
*Sobre Cessão Onerosa, vide Boletim nº XV