Se não houver luta, a terceirização vai abrir caminho para a “uberização” 

Ricardo Antunes é professor titular no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sendo pesquisador da Sociologia do Trabalho. Ele tem 13 obras publicadas sobre a relação Capital x Trabalho e Sindicalismo, sendo um renomado analista do tema
O pesquisador é um dos organizadores do “Manifesto contra a Terceirização e a Precarização do Trabalho”. Um abaixo-assinado online contra a terceirização, pela erradicação do trabalho escravo, a revogação integral da “reforma” Trabalhista e o reconhecimento dos plenos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras em plataformas digitais. O documento foi lançado por mais de mil intelectuais, juristas, parlamentares e entidades, e atualmente conta com mais de três assinaturas.
No último dia 17/10, Antunes participou de uma Mesa Debate promovida pelo Sindipetro-RJ sobre Terceirização e Precarização do Trabalho. Ao Sindicato, o pesquisador concedeu uma densa entrevista na qual abordou temas atuais como a crise estrutural do capitalismo; o processo de terceirização no mundo e no Brasil; a “uberização” das relações de trabalho; e a neoliberalização da Petrobrás na sua relação com os trabalhadores. Confira a entrevista.

Neste quadro de crise estrutural do capital, como os trabalhadores sofrem com os efeitos das ferramentas da Tecnologia da Informação, como descrever esse processo?
Com a crise do petróleo de 1973, quando o capitalismo entrou em uma crise estrutural, nasceu um tripé destrutivo fundamental: neoliberalismo, financeirização e reestruturação produtiva do capital. Essas duas últimas propiciaram um salto tecnológico, fazendo com que a robotização e sistema computacional entrasse nas fábricas a partir dos anos 1970/80, considerando que assim a roda do capital se desenvolveu. Hoje temos algoritmos de inteligência artificial e ChatGPT, não sabendo mais qual o limite do trabalho humano do trabalho maquinal-digital.
Como pesquisador da Sociologia do Trabalho conto com um grupo de pesquisas intitulado “Mundo do Trabalho e suas Metamorfoses”, em que identificou que o trabalho que mais cresce no mundo é o de plataformas digitais, chamando esse processo de “uberização”. Diante da crise estrutural, do alto nível de desemprego e da alta tecnologia foi propiciado que essas plataformas alçassem o protagonismo com ganhos financeiros estratosféricos, como a Uber, Amazon, IFood, entre outras. Esse segmento é o que absorve mais os desempregados, o grande contingente do “exército de reserva”, como definiu Marx. O capitalismo vende a ideia de que esse tipo de trabalhador é empreendedor e autônomo, isso é exploração, e temos que ter em mente que amanhã não será mais a terceirização, e sim a uberização.

Mas antes da “uberização” aconteceu a terceirização que ainda é um modelo de relação de trabalho que afeta os trabalhadores que ainda cresce.
O processo de terceirização começou com a prática do “Toyotismo” que trouxe uma mudança distinta em relação ao “taylorismo”, mas fundamentalmente o segredo do Toyotismo era a criação de um núcleo mínimo de trabalhadores que conhecessem de fato o trabalho da empresa e toda sua estrutura. Assim, a empresa cresceu e terceirizou toda a sua produção, que não ocupava todo o seu espaço de fábrica, se expandindo para outros locais e áreas.

O Sr. pode situar o Brasil nesse processo de terceirização?
A terceirização começou nas empresas privadas e depois chegou nas empresas públicas, passando a ser a regra”, falou, citando que esse debate no Brasil se dá desde os anos 1990. A terceirização total liberada na reforma Trabalhista de Michel Temer foi um divisor de águas e um ataque incisivo nas relações de trabalho no Brasil, prejudicando em demasia os trabalhadores.
O objetivo da terceirização não é beneficiar a classe trabalhadora, essa medida do Temer em liberar a terceirização plena no serviço público, em 2019, essa medida visa dividir, desmobilizar os trabalhadores. Desta forma, por exemplo, daqui a 10, 15 anos a Petrobrás não terá mais trabalhadores estáveis, isso significa que a terceirização fratura a classe trabalhadora.

O governo Lula tem sido muito criticado por grande parte da esquerda brasileira por não conseguir deter os avanços do capital no Brasil. O PT através de Lula e de Dilma ocupou o poder por cinco vezes nos últimos 20 anos, período interrompido pelos governos de Temer e Bolsonaro. Como o Sr. avalia o papel do presidente Lula nesse avanço neoliberal no Brasil?
O traço que tipifica o Lula desde o seu primeiro governo, no início dos anos 2000 até o atual, é o traço de ser, por um lado, um governo que procura minimizar o empobrecimento da população trabalhadora, mas que padece de um limite político, que é de tentar minimizar o sofrimento dos trabalhadores pela via da conciliação de classes.
Não houve no primeiro governo Lula, nos dois primeiros, nenhuma medida estrutural tomada que pudesse iniciar o processo de erradicação e eliminação da miséria, da pobreza e da exploração. O Bolsa Família, aumentos salariais, um pouquinho acima da inflação, e outras medidas políticas contra a fome, eram medidas, por certo, com importância, e ressonância social. Mas cujo objetivo era, digamos, minimizar o sofrimento da população pobre.
Getúlio Vargas fez isso também no passado. Por isso, Getúlio Vargas e Lula são os dois gênios da conciliação capital e trabalho do Brasil. Entre aspas, claro, com uma certa ironia, Lula desenha toda a sua proposta através de uma aliança de um compromisso policlassista entre classe trabalhadora e classe burguesa.

E ao propor, digamos assim, uma política de aliança de classes, Lula demonstra que já abandonou a postura de confrontação de classe há muito tempo, e as últimas manifestações públicas dele sobre isso são evidentes.

Um exemplo disso é que no seu plano de governo, dizia que iria revogar a reforma, aliás contrarreforma Trabalhista de 2017. Tomou posse e nunca mais falou nisso.

Podemos dizer que na prática Lula mudou de lado, isso aconteceu com os trabalhadores “uberizados”, com as plataformas digitais, Lula encampou o discurso do capital, ele não tenta mais conciliar?
Ele dizia que iria enfrentar e resolver a situação dos trabalhadores de aplicativos, mas no começo deste ano fez uma proposta horrorosa, horripilante, medonha que foi o Projeto de Lei 12/24, que aceita a exigência grandes plataformas que não aceitam a discussão acerca da condição de assalariamento dos trabalhadores e das trabalhadoras “uberizados”.
Neste PL 12/24, no artigo 3º, o Lula parte do pressuposto de que os motoristas de aplicativos são autônomos, propondo uma jornada diária de 12 horas de trabalho, que é ilegal, pois a jornada de trabalho do Brasil é de 44 horas semanais.
Então, é ilegal uma jornada de 12 horas, e qualquer pessoa que estuda os entregadores, entregadoras, motoristas, homens e mulheres sabem disso. Em que eles trabalham muito mais do que 8 horas por dia, em média 10, 12,14, às vezes 16, ou mais horas por dia.
Eu já entrevistei trabalhadores, homens ou mulheres, que dirigem automóveis e moto que já trabalharam mais de 16 e 18 horas por dia para cumprir a malfadada meta. Então o governo Lula está certo? Não, ele é expressão de uma política de conciliação de classes para quem gosta de uma política de conciliação de classes, mas a política de conciliação de classe, que é uma impossibilidade absoluta, é inconciliável. A conciliação entre classes só é possível no plano aparente, através de uma utopia.
A realidade é que os trabalhadores vivem sob condições cada vez mais precárias, quando tem o outro que se apropria da venda da força de trabalho sob condições cada vez mais intensas, utilizando-se de um mundo maquínico-informacional-digital, de tecnologias, inteligência artificial, algoritmos, aplicando uma exploração, espoliação e expropriação ilimitadas, como é o caso dos entregadores e entregadores. É por isso que temos que fazer a contestação dessa proposta do governo Lula.

O Sr. esteve no Rio para realizar uma conferência sobre Terceirização e Precarização, um debate promovido pelo Sindipetro-RJ. Como abordar esse tema no âmbito sindical?
A Petrobrás começou a adentrar no terreno da precarização das condições de trabalho no final do século passado, a partir dos anos 1970/1980, como a chegada do neoliberalismo, privatização e a financeirização, o tripé destrutivo.
A dominação capitalista passou a aplicar a precarização, através da terceirização, depois, mais recentemente, da uberização, usando a informalidade do trabalho intermitente etc.
Impulsionada e imposta nas empresas privadas, mas também nas empresas públicas, foi a partir desse processo que a terceirização começou a devastar o trabalho público na administração direta e nas empresas públicas que prestam serviços eminentemente públicos, saúde, previdência, educação. Com isso, as empresas públicas passaram a sofrer, digamos assim, uma mutação, uma transformação, uma metamorfose. De modo que pudesse ser introduzido dentro dessas empresas essas práticas.
Desde os anos 1970 e 1980, chega junto com a Terceirização e a Precarização a quebra da estabilidade, quebra dos direitos, e da organização sindical da classe trabalhadora.

O capitalismo se reinventou com o neoliberalismo?
O capitalismo nesse espaço de tempo se reinventa e ressurge sob a forma neoliberal, a partir deste período. Ele tem esses elementos como princípio, precarização ilimitada da força de trabalho e envolvimento da classe trabalhadora, dos ideais da empresa e quebra da organização sindical. Aliás, o Hayek, um dos fundadores do neoliberalismo, e, portanto, um pensador nefasto do pensamento neoliberal. Ele dizia claramente no seu livro o caminho da servidão que o sindicato de classe é inimigo do capitalismo. Em realidade, isso começa com a crise estrutural de 1973, passando pela crise estrutural que se agudiza nos anos de 2008, 2009, chegando à pandemia em 2020, e segue até agora, num contexto de uma economia sob o risco de uma guerra de amplitude cada vez mais expandida. Mas voltemos lá nos anos 2000. As empresas públicas passaram a ser também empresas em que suas gerências, gestões, diretores, CEOs, seguindo a lógica neoliberal do cada um por si, do empreendedor neoliberal, da dinâmica de que eu tenho que cuidar do meu trabalho, a produtividade etc.
Com isso se reduz os salários e introduz os ganhos por produtividade, como nas empresas privadas. Daí você trabalha mais, ganha mais. Trabalha menos, ganha menos, e assim, vem avançando até os dias atuais.

E como essa cultura neoliberal entre entrou na Petrobrás?
Na Petrobras, no final do século passado tinha mais que 2/3 dos trabalhadores e trabalhadoras com estabilidade, e 1/3 ou menos de 1/3, de trabalhadoras terceirizados. Hoje, é o inverso, a Petrobrás tem cerca de 70% da sua força de trabalho nas suas unidades que são terceirizados. Ou seja, é a conversão de uma empresa que pressiona as trabalhadoras e os trabalhadores terceirizados para serem, como se diz, resilientes. O que é uma vergonha, resiliência é outra coisa. Ela veio das ciências da natureza e é muito importante.
No meio corporativo quem é muito resiliente acaba tendo a síndrome de Burnout, acaba tendo depressão, sofrendo com adoecimentos mentais. Então, o processo que ocorre hoje na Petrobrás tem que ser vigorosamente combatido, ela não pode se converter numa empresa de economia mista, que caminha para ser uma empresa privada.
Há muitos poderosos grupos da indústria petrolífera completamente voltados para pressionar na direção da privatização das empresas estatais existentes em várias partes do mundo, dentre elas a Petrobrás.

E o que deve fazer um sindicato petroleiro como o Sindipetro-RJ?
O papel do sindicato de classe é preservar os direitos da classe, estáveis e efetivos, não entrar na disjunção feita pela empresa que quer separar o estável, o trabalhador, a trabalhadora estável daquele trabalhador ou trabalhadora. É necessário organizar os trabalhadores que têm direitos, trabalhadores e trabalhadoras, organizar a criar condições para que o sindicato represente também os terceirizados e terceirizadas.
Porque se a terceirização não for contida, nós estamos a um passo da uberização nas empresas de economia mista, como a Petrobrás. A uberização ou a “plataformização” vai fazer com que a terceirização, que ainda obriga a empresa terceirizada a cumprir direitos, aplicar uma relação de trabalho intermitente, ou seja “uberizado”, situação em que a classe trabalhadora não recebe, não tem direito nenhum. Então, o Sindicato deve lutar contra a privatização e organizar e mobilizar os petroleiros para virar esse jogo, e transformar a Petrobrás em uma empresa 100% e pública!

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