Custo do combustível precariza ainda mais a vida de trabalhadores de aplicativos no Brasil

Por André Lobão

Os motoristas que trabalham para aplicativos vivem a realidade de pagar caro para colocar seus veículos nas ruas, a serviço de plataformas digitais que os exploram e que não reconhecem seus direitos

Não bastasse a relação de exploração a qual são submetidos, esses trabalhadores autônomos sofrem os efeitos da alta dos combustíveis no Brasil, com aplicação da PPI (Política de Paridade de Importação) que promovida pelo governo federal na Petrobrás, atrela os preços dos combustíveis vendidos pela Petrobrás à variação do mercado internacional e impõe preços de importação como se não tivéssemos uma das maiores e mais eficientes petrolíferas do mundo, como é o caso da Petrobrás, com suas reservas de petróleo, inclusive do Pré-Sal, plataformas, dutos e gasodutos, terminais, refinarias etc, operando a custos muito inferiores aos de importação.

Ao longo do ano de 2021, os preços médios nas refinarias sofreram sucessivos reajustes com uma alta no ano de 54% no preço da gasolina e de 41,6% no diesel. Isso também afeta os trabalhadores autônomos que atuam, por exemplo, para a Uber e outras plataformas digitais do ramo de transporte de passageiros.

Em três de março , trabalhadores autônomos que atuam para plataformas digitais realizaram ato carreata no Rio de Janeiro, em que pediam a redução do preço da gasolina que já está sendo vendida aos R$ 6 em alguns postos, exigindo o fim da PPI.

Dentro desse contexto, duas decisões importantes que interessam diretamente aos trabalhadores autônomos que atuam para a plataforma Uber, de transporte de passageiros, foram tomadas na esfera internacional no último mês de fevereiro.

No dia 19/02, a Suprema Corte do Reino Unido publicou sua sentença sobre um processo movido por trabalhadores contra contra o Uber, mantendo as decisões dos tribunais trabalhistas e a classificação dos motoristas como “trabalhadores”, uma figura intermediária entre empregados e autônomos, em que se garantem alguns direitos, como o salário mínimo, férias e regras sobre jornada de trabalho.

Já, em 23/02, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) divulgou o seu relatório anual sobre perspectivas sociais e de emprego no mundo, dedicado inteiramente na edição de 2021 ao papel das plataformas digitais nas transformações no mundo do trabalho.

O Sindipetro-RJ conversou com o doutor em Direito pela Universidade de São Paulo e procurador do Trabalho, Renan Kalil que em entrevista por e-mail abordou, entre outros assuntos relacionados aos trabalhadores de aplicativos, como o custo do combustível aumenta ainda mais a exploração para quem trabalha para plataformas digitais, precarizando ainda mais essa relação de trabalho. O pesquisador ainda explica como o trabalho intermitente também pode ser aplicado aos terceirizados, e explica como as decisões da Suprema Corte do Reino Unido, que reconheceu direitos trabalhistas de motoristas do Uber, e da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que recomenda a regulamentação de quem trabalha para aplicativos, vão fortalecer a luta contra a exploração dos trabalhadores autônomos.

Sindipetro-RJ – Os trabalhadores autônomos que atuam em plataformas digitais de transporte como Uber e 99, entre outras, sofrem com a atual política de preços aplicada pelo governo federal na Petrobrás, pois essas plataformas não subsidiam os motoristas na compra de combustíveis. Esse pode ser mais um exemplo da precarização a qual estão sendo submetidos?

Renan Kalil – O fato de os trabalhadores , via plataformas digitais do setor de transporte, como é o caso dos motoristas da Uber e da 99, terem que arcar com custos operacionais da sua atividade, como é o caso do combustível, em um cenário em que é evidente a subordinação deles em face da plataforma, mostra como as suas condições de trabalho são precárias.

Além disso, é importante ressaltar um aspecto desse trabalho e como as empresas tratam os motoristas: apesar de dizerem que, pelo menos no Brasil, os trabalhadores são autônomos, eles não têm qualquer poder para determinar o valor da viagem oferecida aos passageiros em um cenário de constante aumento de preços dos combustíveis. Ou seja, estamos diante de uma situação em que os trabalhadores somente arcam com os prejuízos dessa atividade. Isso mostra que a Uber usufrui do melhor dos mundos (do lado empresarial) no Brasil: é capaz de controlar os motoristas e determinar como o trabalho deve ser feito, mas não arca com os custos do seu negócio.

Sindipetro-RJ – Existe a possibilidade pela atual legislação trabalhista, modificada pela reforma trabalhista do governo Temer, de termos trabalhadores terceirizados submetidos a este tipo de relação existente entre trabalhadores autônomos e plataformas digitais, há casos relatados?

Renan Kalil – As plataformas digitais operam de maneiras distintas e, dependendo do seu funcionamento, é possível que tentem se utilizar as formas precarizantes aprovadas nas reformas aprovadas no governo Temer.

A iFood, por exemplo, tem uma modalidade de entregador que trabalha para um OL (operador logístico). Nesse caso, o OL faz um contrato com a iFood e se compromete a providenciar entregar determinados horários e dias. Esse OL contrata trabalhadores, sem formalizar o contrato de trabalho, para atender a demanda a iFood. Há decisões da Justiça do Trabalho em que se reconheceu o vínculo empregatício do entregador com o OL e a responsabilidade subsidiária da iFood.

Além disso, caso decisões da Justiça do Trabalho passem a reconhecer o vínculo empregatício entre trabalhadores e plataformas digitais, é provável que essas empresas passem a tentar classificá-los como intermitentes, que é uma categoria com menos direitos e segurança que os trabalhadores celetistas tradicionais.

Sindipetro-RJ – Como essa decisão pode mudar a relação entre esses trabalhadores e a Uber de uma forma global, incluindo o Brasil?

Renan Kalil – A decisão da Suprema Corte do Reino Unido é importante pois chama a atenção para um tema que, pelo menos até o presente momento, não foi tratado de maneira satisfatória no Tribunal Superior do Trabalho, que é a forma pela qual a Uber exerce o controle dos trabalhadores.

Foram destacados cinco aspectos para demonstrar que, apesar de os motoristas escolherem quando e onde trabalhar, nos momentos em que estão dirigindo, trabalham para a plataforma digital. O primeiro é a determinação unilateral pela Uber dos valores pagos aos trabalhadores, uma vez que estabelece o preço de cada viagem e a sua taxa de serviço, o que aponta para o controle da remuneração. O segundo é a fixação, nos termos de uso e sem ouvir os trabalhadores, da forma pela qual o trabalho deve ser realizado.

O terceiro é a submissão dos motoristas às regras definidas pela Uber assim que entram no aplicativo e ficam disponíveis para receberem chamadas. Há duas formas em que ocorre o controle dos trabalhadores para que aceitem os pedidos de viagem. Uma é a restrição das informações oferecidas aos motoristas, o que afeta a sua capacidade de decidir aceitar ou rejeitar uma chamada. Por exemplo, o trabalhador tem conhecimento do destino do passageiro somente após o seu embarque. A outra é a determinação de taxas de aceitação e de cancelamento. O não atendimento dos parâmetros estabelecidos pela Uber em relação a essas taxas dá margem a uma série de medidas, desde o envio de mensagens alertando os motoristas sobre o seu comportamento até a suspensão dos trabalhadores. A Suprema Corte afirmou que essa situação deixa claro que os motoristas estão subordinados à Uber.

O quarto é o significativo grau de controle exercido pela Uber em relação à maneira pela qual os motoristas trabalham. O principal é o uso do sistema de ranqueamento. Se o motorista mantém uma nota abaixo do padrão estabelecido pela Uber, ele pode ser suspenso ou dispensado. Ou seja, esse sistema é usado para gerenciar o desempenho dos trabalhadores e é a base para decidir a permanência ou o desligamento dos motoristas. Trata-se de uma forma clássica de subordinação.

O quinto é a restrição da comunicação entre motoristas e passageiros ao mínimo necessário para realizar a viagem, sendo que todas as mensagens são trocadas por meio do aplicativo da Uber. Quando uma corrida é solicitada, não é oferecida a possibilidade de escolher um determinado trabalhador e todas as questões relacionadas à viagem são gerenciadas pela Uber.

Como a Uber opera globalmente e a maior parte de suas regras, como as analisadas pela Suprema Corte do Reino Unido, são aplicadas em diversos países, como o Brasil, é relevante olhar para esse cenário e ver os seus impactos no nosso país. Essas cinco características examinadas pelos juízes britânicos mostram que, de acordo com o direito do trabalho brasileiro, é evidente a subordinação do motorista em face da Uber, o que fortalece o argumento da existência da relação de emprego nesse caso, nos moldes estabelecidos pela CLT.

Sindipetro-RJ – De que forma você avalia a decisão da OIT que pede a regulamentação do trabalho em plataformas digitais?

Renan Kalil – A Organização Internacional do Trabalho (OIT) divulgou o seu relatório anual sobre perspectivas sociais e de emprego no mundo, dedicado inteiramente na edição de 2021 ao papel das plataformas digitais nas transformações no mundo do trabalho. Esse documento foi elaborado levando em consideração diversas pesquisas acadêmicas desenvolvidas sobre o tema, assim como uma pesquisa feita pela OIT com trabalhadores via plataformas digitais em diversos países.

Esse relatório trata de temas urgentes sobre o trabalho via plataformas digitais: o crescimento da economia digital, o modelo de negócios e as estratégias das plataformas digitais, a difusão das plataformas digitais na economia, as plataformas digitais e a redefinição do trabalho, como assegurar trabalho decente nas plataformas digitais e o que deve ser feito para que os trabalhadores tenham os seus direitos respeitados.

Um dos pontos mais relevantes desse relatório é a análise do gerenciamento algorítmico, um sistema automatizado que distribui tarefas e toma decisões relacionadas ao trabalho. Trata-se de um elemento definidor da experiência cotidiana dos trabalhadores nas plataformas digitais. O sistema de ranqueamento, operado pelos algoritmos a partir de métricas fixadas pelas empresas, considera a aceitação e rejeição de trabalho e é alimentado pelas notas que os passageiros dão ao final de cada viagem. Muitos trabalhadores se sentem impotentes para recusar uma atividade pelo receio dos impactos negativos no recebimento de trabalho, da perda de oferta de bônus, do recebimento de penalidades econômicas e de serem desligados da plataforma. Ainda, não existe um mecanismo justo de resolução de disputas para contestar o recebimento de uma nota baixa ou uma reclamação indevida de um cliente.

Segundo a OIT, esse cenário mostra que a autonomia dos trabalhadores para organizar as suas atividades é muito limitada. A liberdade de escolher quando e onde trabalhar é determinada pelas notas recebidas e pelo desempenho na plataforma digital, além de outras estruturas de incentivo ao trabalho, como o preço dinâmico.

A compreensão dessa dinâmica é fundamental para entender o trabalho via plataformas digitais e para que pensar em como assegurar direitos mínimos para que o trabalhador tenha que se submeter a uma situação precarizante.

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