Por Gleice Carlos Nogueira Rodrigues*
Tramitam na Câmara dos Deputados, em regime de prioridade, os projetos de lei 7920/2017 e 6965/2002 que tratam de conferir legalidade à substituição de documentos originais por documentos digitalizados. O PL 7920 é oriundo do PL 146/2007 do Senador Magno Malta (PR-ES), que ano passado foi desarquivado, tramitou em regime de urgência e aprovado no Senado rapidamente. Antes de sofrer alterações, o PL determinava que documentos poderiam ser eliminados após a digitalização, inclusive por incineração.
Deu-se assim início ao movimento “Queima de Arquivo Não!”, que após ganhar repercussão em veículos de comunicação e nas redes sociais, inclusive com apoio do Deputado Federal Glauber Braga, do Psol, fez com que o senador proponente emitisse nota oficial, no dia 10 de agosto, comunicando que solicitaria ao relator do PL na Câmara dos Deputados parecer contrário à matéria e seu arquivamento definitivo. Contudo, o PL está apensado a outro de tema semelhante, o PL 6965/2002, proposto pelo Deputado do PFL na época, José Carlos Coutinho.
A possibilidade de digitalização de documentos convencionais e a destruição dos originais traz diversas preocupações. Uma delas é que na atual conjuntura de corrupção, que permeia todos os poderes e as esferas da República, medidas como essas favorecem a destruição de provas frente à fragilidade dos suportes digitais e a facilidade de alterações de documentos digitalizados, sem possibilidade de verificação dos originais destruídos no caso de suspeita de fraudes.
É uma chance a mais de dificultar a investigação dos crimes de corrupção que assolam o país. Também pode possibilitar o desaparecimento de provas de outros crimes cometidos pelo Estado como no período da ditadura.
A propalada digitalização de documentos como eficiência para a gestão pública fará com que acelerem a contratação de empresas privadas para terceirizar esse serviço. Sabemos que os órgãos públicos já estão cheios de empresas privadas encarregadas de serviços que tempos atrás eram desempenhados também por servidores públicos concursados. Hoje, trabalhos como limpeza, segurança, transporte e alguns serviços administrativos já são executados por trabalhadores com condições de trabalho precarizadas, apesar dos altos lucros assegurados às empresas. Há muito que se investigar sobre as relações promíscuas entre os proprietários dessas empresas e os ocupantes de cargos na administração pública. Portanto, vamos permitir a entrada de mais empresas nos órgãos públicos e dessa vez para cuidar dos documentos e informações públicas? Vamos ceder ao lobby desses empresários?
Mais um aspecto a se preocupar é o que se relaciona à soberania nacional. O Brasil não possui nuvens públicas, sendo assim, os documentos digitais poderão ficar armazenados sob custódia de empresas privadas e fora do país como a Google e a Microsoft.
Ademais, todo mundo sabe o quanto é fácil desaparecer um documento digital, intencionalmente, por falhas técnicas ou por obsolescência tecnológica. E o Governo já demonstrou diversas vezes sua incapacidade de gerenciar esses documentos, ou pelo menos é o argumento que utiliza frequentemente para negar o acesso à informação.
Um exemplo é o caso da auditoria da dívida pública, reivindicada desde a “redemocratização” do país e uma das ações mais necessárias de enfrentamento à forjada crise econômica pela qual passa o Brasil. Apesar do Orçamento Geral da União de 2017 ter previsto o valor de R$1,722 trilhão, que equivale a mais de R$ 4,7 bilhões por dia e mais de 50% das despesas totais, para os serviços da dívida, esse montante absurdo é administrado sem a devida transparência.
O chamado Sistema da Dívida só é mantido graças à violação do direito de acesso à informação e ao ocultamento dos documentos que deveriam comprovar as origens, a aplicação dos recursos, os credores e outras informações. Nem mesmo a “CPI da Dívida” ocorrida na Câmara dos Deputados, entre os anos de 2009 e 2010, teve acesso a todos esses documentos, sob justificativas absurdas como a de que operações foram feitas em sistemas informatizados que já estavam desativados. Sendo assim, questionamos: como podemos continuar pagando uma dívida sem provas dos fatos que a geraram? Que capacidade e interesse tem o Governo para gerir e dar acesso a documentos digitais tão importantes?
A falta de gestão de documentos tem sido um escudo para o Estado manter sua opacidade. Isso ocorre também por falta de conhecimento da sociedade acerca do seu direito de acesso à informação e da cobrança da gestão de documentos para que ele se torne possível.
Você sabia que pode solicitar qualquer informação dos órgãos públicos?
Salvo as exceções previstas em Lei [1], elas devem ser prestadas na hora ou no prazo de até 20 dias, prorrogáveis por mais 10. No entanto, muitas vezes os órgãos negam tais pedidos informando que não possuem documentos que registram tais informações. Então, é importante saber que os documentos públicos, de acordo com a legislação atual, [2] só podem eliminados após a aprovação de uma comissão obrigatória em cada órgão da Administração Pública, a aprovação das instituições arquivísticas e a ciência em Diário Oficial.
A aprovação do PL 7920 modificaria esses critérios, determinando que após a digitalização, os documentos podem ser eliminados sem o procedimento de avaliação. Isso acarretaria danos irreparáveis à preservação da memória do nosso país e do nosso povo, pois não daria tempo de selecionar os documentos importantes para a história. Ademais, haverá um enfraquecimento do papel das instituições arquivísticas que, apesar de sua fundamental importância para a administração pública, para a cidadania e para a história, já são pouco reconhecidas. A situação se tornará ainda pior ao delegar as empresas privadas a gestão e custódia da documentação pública.
Você pode então estar se perguntando: qual seria a solução? Não é preciso modernizar a gestão pública e resolver os amontoados de papéis? Sim, concordamos! Em relação aos documentos acumulados, o que deve ser feito é gestão, avaliando os que já venceram prazos de guarda e preservando somente os essenciais, inclusive para não desperdiçar dinheiro, tempo e outros recursos com a digitalização desnecessária. E podemos avançar no uso de documentos digitais, desde que siga critérios de produção, gestão e preservação de maneira autêntica, confiável e acessível, como prevê, por exemplo, o modelo e-ARQ Brasil [3].
Para tanto, defendemos o fortalecimento e a expansão das instituições arquivísticas municipais, estaduais e do Arquivo Nacional, que em vez de ser ampliado para dar suporte a essas questões e para o avanço da Política Nacional de Arquivos, está correndo risco de fechar as portas devido aos cortes orçamentários.
Diante de tudo isso, considerando que apresentam graves ameaças à transparência pública, à gestão e preservação dos documentos, bem como à preservação da memória e favorece a corrupção, diversas entidades já se pronunciaram contra os projetos de lei e solicitam o arquivamento. O direito de acesso à informação é necessário inclusive para garantia de outros direitos essenciais, mas será ainda mais cerceado se permitirmos a “queima de arquivo”.
Mobilize-se você também. Acesse o site queimadearquivonao.webnode.com assine e compartilhe o abaixo assinado e apoie essa luta.
o Sindipetro-RJ também está na luta contra este projeto.
#QUEIMADEARQUIVONÃO!
Referências:
[1] Lei nº 12.527/2011 e legislação complementar.
[2] Lei nº 8.159/1991, Decreto nº 4.073/2002 e legislação complementar.
[3] e-ARQ Brasil: Modelo de Requisitos para Sistemas Informatizados de Gestão Arquivística de Documentos, desenvolvido pela Câmara Técnica de Documentos Eletrônicos do Conselho Nacional de Arquivos
* Gleice Carlos Nogueira Rodrigues é arquivista da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, membro do Comitê Nacional dos Arquivistas das Instituições Federais de Ensino, mestranda no Programa de Pós Graduação em Gestão de Documentos e Arquivos da Unirio e voluntária da Auditoria Cidadã da Dívida.