PL dos aplicativos: um embrião de perda de direitos dos trabalhadores

Proposta apresentada deveria beneficiar os motoristas de aplicativos, mas pode se tornar uma armadilha no futuro para os demais trabalhadores

O governo Lula encaminhou em regime de urgência para o Congresso Nacional o PL 12/2024 que trata da regulamentação dos trabalhadores de aplicativos de transporte de empresas como Uber e 99.

Salário-mínimo, o primeiro “Me engano que eu gosto”

Para especialistas, como o professor e pesquisador da Unicamp Ricardo Antunes, o PL cria uma categoria “híbrida” de trabalhadores, definidos como autônomos e empreendedores, que terão um tratamento de subcategoria. A afirmação foi dada pelo pesquisador em entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos, reproduzida no Blog da Boitempo.

Antunes considera que o projeto colocou em risco atuais garantias trabalhistas, como a integridade do salário-mínimo. Na opinião dele, o salário-mínimo é o primeiro direito a ser atacado, pois o projeto reconhece o trabalho intermitente e o pagamento de salário por hora. A proposta apresenta o pagamento mínimo de salário de R$32,10 por hora. Da mesma forma acontece nos EUA, país que abriga a sede da maioria das plataformas de aplicativos.

“Com relação ao salário-mínimo, o primeiro ponto nefasto é que ele cria uma sistemática que tende a reduzir o salário dos/as trabalhadores/as que já trabalham. Isto coloca em xeque, sim, trabalhadores recebendo menos do que o salário-mínimo” – avalia.

Outro ponto de crítica de Ricardo Antunes envolve a questão da Previdência Social. Na visão de Antunes não há como garantir que o trabalhador ‘uberizado” tenha condições de pagar sua previdência.

Necessidade de flexibilidade com direitos

Um dos aspectos que envolvem o reconhecimento dos direitos desses trabalhadores é o que passa pelo reconhecimento da subordinação, do assalariamento real e do reconhecimento pleno dos direitos do trabalho. Isso passa pela preservação da flexibilidade de horários, que tipifica esta atividade.

“Pensando em motoristas e entregadores, quando perguntados se querem CLT, a maioria diz não, se perguntar se querem sindicato, boa parte diz não. Agora, se perguntar se eles querem o descanso semanal pago, dizem que sim. A mesma coisa quando perguntam se eles gostariam de ter férias pagas de um mês, 13º salário e condições para usufruir de uma previdência na aposentadoria, eles dizem que sim. Era isso que era possível fazer” – diz o pesquisador que também é autor dos livros Icebergs à deriva: o trabalho nas plataformas digitais (organizador, Boitempo, 2023), Uberização, trabalho digital e indústria 4.0 (organizador, Boitempo, 2020), Riqueza e miséria do trabalho no Brasil: trabalho digital, autogestão e expropriação da vida (volume IV) (Boitempo, 2019) e O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital (Boitempo, 2018).

Atualmente, a CLT já permite para algumas categorias que o trabalho seja flexibilizado na jornada, mas não flexibilizado nos direitos. Para o pesquisador, “esse monstrengo do governo Lula mantém a precariedade completa das condições de trabalho. O motorista ou entregador pode trabalhar até 12 horas? É um acinte, pois a jornada no Brasil é de 44 horas, sendo de 40 horas para vários setores. Ter 12 horas ou mais, é outro vilipêndio inaceitável” – critica.

A burguesia predadora cria uma maquiagem para explorar mais

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgados em 2023, no ano de 2022 havia 600 mil trabalhadores de aplicativos com rendimentos inferiores aos trabalhadores não-plataformados.  Esses números indicam que a partir de plataformas digitais, a burguesia brasileira, aliada ao capital global, está criando uma relação capital-trabalho, ainda mais predadora.

“Essa ação empresarial, conduzida pelo mais destrutivo de todos os capitais – o capital financeiro – indica que a realidade do trabalho no Brasil, a depender dos interesses do capital, é sempre de mais predação, mais exploração, mais espoliação e mais expropriação, em plena era de uma expansão célere do mundo informacional, digital, da  mas também nos bolsões mais precarizados do Norte, o capital só pode avançar incrementando altamente a tecnologia, de modo a levar ao limite a exploração, espoliação e expropriação da classe trabalhadora” – resumiu o pesquisador na entrevista que pode ser conferida em (https://blogdaboitempo.com.br/2024/03/22/pl-dos-aplicativos-urge-evitar-a-iminente-derrota-cabal-dos-trabalhadores-e-trabalhadoras-entrevista-com-ricardo-antunes/).

Negacionismo trabalhista

 No artigo publicado no blog da Boitempo, “O PL do negacionismo trabalhista”, os autores, os professores de Direito, Valdete Souto Severo (UFRGS) e Jorge Luiz Souto Maior (USP) pontuam que o PL proposto pelo governo federal consegue ser ainda pior do que a Reforma Trabalhista de 2017, a que chama de “Contrarreforma”. “É assim que precisamos compreender a proposta de regulação da atividade de motoristas contratados por empresas que operam seu negócio por intermédio de plataformas digitais. Na verdade, trata-se do pior momento da história dos direitos trabalhistas no Brasil” – resumem no artigo.

A partir de negociações iniciadas em 2023, com presença do governo, vinham sendo realizadas discussões entre representações dos motoristas e das empresas do setor.

“A proposta das empresas, desde o início, era a regulação precarizante: chamar de autônomos seus empregados; permitir que estes trabalhassem em limite (inconstitucional, é bom frisar) de 12h diárias; e que se mantivesse um sistema de controle das atividades dos motoristas, com permissivos punitivos, inclusive. E qual o teor do texto do PL apresentado ontem, com pompa e circunstância pelo governo? Exatamente o que as empresas propuseram desde o início” – explicam.

Para os autores, o texto não reflete o diálogo e estudos para enfrentamento de uma questão que seria promovida pela inserção da nova tecnologia no mundo do trabalho. “Considerando os dados concretos, refletidos no histórico e no resultado final do PL, trata-se, isto sim, de mera capitulação! O governo trabalhista capitula, cai de joelhos, e defende, explicitamente, os ideais dos patrões, ou, mais precisamente, do capital estrangeiro, em seu propósito de auferir grandes taxas de lucro por meio da exploração de um trabalho sem proteção social e poder de reivindicação. A leitura do texto causa indignação e revolta” – enfatizam.

Um dos pontos mais polêmicos do PL é o o artigo 5º que estabelece a possibilidade de que as empresas operadoras de aplicativos adotem medidas de punição ao motorista prestador de serviço da plataforma de transporte.

(…) “Normas e medidas para manter a qualidade dos serviços prestados por intermédio da plataforma, inclusive suspensões, bloqueios e exclusões”. Punição, no melhor estilo do que a linguagem, à época do capitalismo industrial, chamava de “gancho”. Algo que sequer a CLT prevê: a possibilidade de punir quem depende do trabalho para sobreviver. Nada pode representar melhor o quanto as relações de trabalho no Brasil seguem atravessadas por uma racionalidade escravista, que não vê limite à lógica da exploração e da precarização do trabalho” – critica um trecho do artigo que pode ser conferido na íntegra (https://blogdaboitempo.com.br/2024/03/08/o-pl-do-negacionismo-trabalhista/)

Síntese do PL 12/2024 – o “bebê de Rosemary”

A proposta que foi apresentada pelo governo ao Congresso prevê auxílio-maternidade, contribuição ao INSS e pagamento mínimo por hora de trabalho no valor de R$32,10.

Além disso, a jornada de trabalho em uma mesma plataforma não pode ultrapassar 12 horas diárias. Os trabalhadores devem realizar ao menos 8 horas diárias para ter acesso ao piso da categoria.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) disse no dia da apresentação do projeto, em 04/03, durante evento com ministros e sindicalistas no Palácio do Planalto, que o projeto de lei sobre o trabalho de motoristas por aplicativo representa a concepção de uma criança. O problema é que, conforme avaliam alguns especialistas é que esse PL não se torne um “bebê de Rosemary”, uma alusão ao filme de 1968 dirigido por Roman Polansky em que um casal dava à luz a um bebê diabólico.

O cenário da categoria petroleira

Quando observamos a fala do presidente da República afirmando que o trabalhador não quer CLT, somada a toda desconstrução das bases do direito do trabalho feitas pelo Judiciário, e um horizonte de flexibilização e desregulamentação ainda maior promovida pelo legislativo, verificamos a existência de um quase consenso de uma ampla maioria que atua na lógica empresarial de apoio a retirada de direitos dos trabalhadores. Não há de se duvidar que, por meio de narrativas, como é o caso deste PL 12/2024, se criassem projetos de lei dividindo e especificando outros critérios para o desmonte dos direitos, sob a justificativa de adequação à nova realidade de relação de trabalho a partir das plataformas digitais.

Para a terceirização, por exemplo, já existe uma lei recente, a 13.429, aprovada em 31 de março de 2017, que flexibilizou algumas situações da legislação vigente. Mas como já foi dito, não atende mais os anseios do capital. E essa realidade, a categoria desses trabalhadores na Petrobrás já conhece bem.

Para o cenário futuro, infelizmente a perspectiva é de mais flexibilizações e desregulamentações, que virão, como agora, camuflados de avanços, liberdade e preenchimento de falsas lacunas na legislação existente.

Diante deste contexto, é fundamental que as categorias, a partir de seus sindicatos, dentre ele os petroleiros, consigam mobilizar suas respectivas bases na busca da construção de uma luta para defender seus direitos e o seu futuro.

Na Petrobrás, por exemplo, a cada negociação de ACT passamos pelas ameaças de retiradas de direitos que aos poucos são implementadas pelas direções da empresa, sejam em momentos em que o poder é ocupado pelos prepostos da burguesia ou por um governo apoiado pela base dos próprios trabalhadores, mas limitado por uma frente ampla que se impõe ao comando do capital, impedindo avanços para os trabalhadores e trabalhadoras, leia-se mais direitos e retorno dos que foram retirados,  como vivenciamos neste momento com Lula.

É preciso lutar, e não se deixar levar pela narrativa de adequação aos novos tempos.

 

 

 

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